A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE
Por Guilherme Charneski Carneiro
O princípio da proteção ao trabalhador está sedimentado como um dos principais vértices do Direito do Trabalho, uma vez que se fundamenta na relação de desequilíbrio inerente entre as partes: de um lado, o empregado, mais frágil, detentor de uma proteção especial da legislação, e de outro, o empregador, com maior liberdade e poder de decisão, mas contentando-se, em face do Estado, com a preservação de seus direitos fundamentais.
Ao longo da história do Direito do Trabalho, como se sabe, a aplicação de tal princípio se deu de modo ininterrupto e, para muitos doutrinadores, absoluto, não abrindo possibilidades para relativizações mesmo que estas se mostrassem interessantes para ambas as partes dos polos trabalhistas.
Contudo, diante da evolução da sociedade e, consequentemente, das relações de trabalho, afetada por reflexões de cunho moderno e mais amplamente liberal, a ideia que se instaurou na mentalidade trabalhadora é de que a proteção legislativa não deve se ater a visões obsoletas de épocas passadas, mas se adequar ao modo como empregado e empregador desenvolvem suas atividades no contemporâneo — sem, com isso, acarretar a perda da essência do viés protetivo.
Deste modo, após a Reforma Trabalhista no ano de 2017, uma das figuras que representou muito bem essas mudanças (mas que ainda é motivo de polêmica entre os tribunais) é o empregado hipersuficiente, fundamentado no artigo 444, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho — ou, dito de outro modo, aquele que possui diploma de nível superior e recebe salário igual ou superior a duas vezes o teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (o que hoje corresponde a R$ 14.174,44).
Assim, a reforma trabalhista estipulou que os contratos celebrados individualmente entre empregadores e essa casta de empregados prevalecem sobre a legislação e as normas coletivas em todos os temas que envolvem o artigo 611-A, deste mesmo dispositivo legal, podendo haver negociação individual entre as partes “em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes”.
São diversas as possibilidades de negociação deste tipo de trabalhador com a empresa, sendo as mais interessantes o pacto quanto à jornada de trabalho, intervalo intrajornada, plano de cargos e salários, regime de sobreaviso, enquadramento do grau de insalubridade, prorrogação de jornada em locais insalubres, entre outros.
Portanto, em se tratando de quaisquer matérias acima elencadas, somadas com a figura do empregado hipersuficiente, a vontade das partes prevalecerá ao disposto em Lei, mesmo que esta interprete a situação acordada como prejudicial a uma delas.
No entanto, também existem limites sobre os quais não pode haver negociação, os quais encontramos no artigo 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho.
Em verdade, o que se vê em diversos tribunais do país é a tendência a autorizar a negociação entre o empregado hipersuficiente e a empresa, considerando a capacidade de agir, a liberdade e a intenção do empregado, prevalecendo em face da proteção trabalhista, dando a ele a oportunidade de deliberar a melhor maneira de prestar suas atividades.
Inclusive, há decisões no sentido de que, a existência de diploma de nível superior, seria dispensável se comprovada a capacidade e o amplo discernimento do empregado, somados ao requisito financeiro.
Paulatinamente, os tribunais vêm aderindo a esta visão, mas desde que o acordo individual observe as condições de validade previstas na legislação, principalmente constitucional, sem nenhum vício na manifestação de vontade e que o conteúdo do acordo não seja ilícito ou ilegal.
A criação desta figura hipersuficiente na legislação trabalhista não retirou direitos, pelo contrário. A criação desta figura deu autonomia de negociação sobre deveres e obrigações, garantindo direitos a ambas as partes, reconhecendo que as relações de trabalho cada vez mais pedem a regulamentação e aceitação de acordos individuais que preservam o livre arbítrio e se diferem daquela figura do empregado hipossuficiente que há muitos anos não deve ser parâmetro para uma parcela de trabalhadores.